sexta-feira, fevereiro 29
Ele escapara de seus braços há quase quatro anos e ela sempre quis revê-lo, sempre torceu pra que ele voltasse à sua cidadezinha de interior e a procurasse. Quando realmente aconteceu, mal pode acreditar. Seria perfeito. O encontro perfeito.
E foi assim que sua tarde passou, aos pouquinhos, gasta com pensamentos, detalhes, sonhos.
Quinze minutos antes da hora marcada M já estava no local escolhido, impecável, e retocava cada centímetro de suas pálpebras, separava cuidadosamente os cílios com seu rímel e se controlava ao máximo para não gritar chamando por ele, para que ele não se atrasasse e não a obrigasse a olhar novamente no espelho.
Finalmente encontrou um rosto conhecido e, satisfeitíssima com a primeira impressão de um novo H, abriu um sorriso de orelha a orelha que demonstrava descaradamente a felicidade que ela sentia. Aquele instante sim pareceu o mais longo de todo o dia, mas o mais intenso e o mais importante de anos. Fitou H, um H alto, cabelos lisos cuidadosamente arrumados, jaqueta jeans, camisa de botões branca e traços bem definidos. Era um homem. O príncipe de M.
Ainda enfeitiçada M reparou em uma sombra que acompanhava H e seguia em direção à sua mesa, logo seu olhar se desviou e retornou cheio de curiosidade para absorver as mudanças gritantes em H e apagou da memória a imagem da moça que o acompanhava. Levantou-se quase sem perceber e cumprimentou-o. Em seguida a moça também a cumprimentou, mas seu olhar seguia H e não importava quantas pessoas estariam ali para cumprimentá-la, só queria parar e conversar com ele. Recuperar o tempo perdido.
Então sentaram-se os dois em frente à M e ela não pôde mais deixar a moça esquecida. Ela era bonita, devia ter a sua idade e tinha um corpo muito bem formado. Começaram a surgir suposições monstruosas em relação a ela e H e ele iniciou a conversa apresentando-lhe a tal moça:
-M, esta é a V, minha noiva. Estamos muito apaixonados, vamos nos casar semana que vem. Viemos para cá para comunicarmos à família e eu quis que...
M não ouviu mais nada e nem sequer foi capaz de distinguir aquele sentimento. Apenas sentiu seu mundo desmoronar tentando aceitar a idéia de ser a pessoa mais infeliz do mundo.
[01/10/2006]
domingo, fevereiro 24
Comerem os pratos, os patos e os porcos.
Comer em canibalismo e comer a si mesmo; antropofagia inalterada, incontrolada, insana.
Comer pela sobrevivência, comer pelos que são comidos; refeições a preço de banana com feijões brotando nas moscas que as cercam.
Comer as idéias e mastigá-las incessantemente por nunca serem disseminadas culturalmente; nunca aceitas e digeridas e sempre a procura de sucos que as dissolvam totalmente, nunca cozinhadas ao ponto, nunca temperadas perfeitamente. Sempre alteradas. Sempre alteradas.
Alteradas pelo olhar, comidas com o olhar. Comidas frias com o olhar sem o gosto da frescura, sem a disciplina de uma refeição. Sem a educação, sem a satisfação. Como porcos, como animais, nunca cansam. Nunca cansam.
Seus sentidos não são aguçados o bastante. Sua língua degusta os últimos pedaços que lhe restam. Estes são eliminados sem pausas, sem sucos, sem pratos ou sucos. Vão direto pro esgoto. Minto. Vão direto pro esgoto. Não. Vão direto descarga abaixo, e vão direto pro esgoto.
Depois rodam pelo esgoto, eram apenas idéias. Eram apenas idéias a preço de banana, engolidas por algum canibal em seu chiqueiro com pratos, porcos e patos. Engolidas por patos em pratos com porcos. Haviam gatos também, mas estes eram vegetarianos.
quarta-feira, fevereiro 13
=?
Eu entendo de tudo como quem não entende de nada, faço coisas sorrindo, mas to sempre embaraçada, digo sempre mentiras querendo explicar o que é a verdade, atuando pra demonstrar o que sinto na realidade, finjo ser o que sou, para intensificar o meu “eu”, amo o que odeio, por odiar algo só meu.
E o que sou ou serei?Quem sabe? Eu que não sei.
sexta-feira, fevereiro 1
Gostar do bicho de cinco bocas não, apesar de parecer tão monstruoso quanto o que aparecia nos seus sonhos – aquele todo verde, enrolado na grama – ou seria a grama enrolada no verde?
Não chega ao menos a sentir o cheiro da cor que ilumina seus olhos e relaxa sua mente, ainda que ela esteja sempre – aparentemente – relaxada.
Talvez a coisa que a impede de pensar em muitas coisas ao mesmo tempo seja a mesma coisa que a faz lembrar daquela cor, não com o seu contraste, mas com seu brilho e distorção tonais, ainda assim formando uma única cor, com camadas que fogem das dimensões alcançadas pelos olhos, impossíveis de ver sem sentir.
Apesar disso, é a cor que todos já viram, ao menos uma vez, que ultrapassa o desconforto do verde da grama, ainda que por um curto tempo ou com uma intensidade insignificante ao consciente, mas que todos, ao fecharem os olhos, conseguem enxergar.
Não se trata do tom alaranjado de quando se está disposto sobre o sol, nem do tom incolor de quando não está sob as luzes.
É aquela cor simples, que não troca nunca de endereço e sempre retorna de onde veio, ainda que com algumas manchas e incertezas. A mesma cor que é omitida até para quem vê, e que esconde-se em elementos insensíveis e irreais, ou em bichos de cinco, sete, doze cabeças – e bocas.
Reter os bichos, as cores, os delírios dentro de si incomoda tanto quanto a grama dos seus sonhos e a mente vazia em quase todos os momentos. Superá-la ou transparecer a cor sob os seus efeitos não é uma das opções. Conviver com ela sim.