quinta-feira, março 27

Quando entrou no vagão seu olhar cruzou o meu por um instante e logo correu o pequeno espaço a procurar por um cantinho para se encostar.
Hoje ela estava com sapatilhas cor-de-pele, cabelos soltos e um pouco úmidos.
Não tinha mais a expressão cansada do dia anterior, certamente havia dormido cedo.
Já estava, como de costume, com os fones no ouvido. Era comum que ela desse umas sacudidas durante a viagem, provavelmente conforme o ritmo das musicas.
Nos dias em que estava mais alegre, cantarolava baixinho as letras, em alguma outra língua de parte do ocidente ou em um inglês muitíssimo mal interpretado.
Eu também sempre estava com meus fones no ouvido. Não que a música me impulsionasse especialmente ou mudasse o meu dia, mas era sempre um tédio aquela rotina sem uma trilha sonora.
Eu morria de curiosidade para saber que tipo de coisas ela ouvia.
Ela também devia ter essa curiosidade quanto a mim, e mal sabia que do meu par de fones, apenas um funcionava.
A gente vive trocando olhares, intimidades à parte.
Já a conheço tão bem que posso afirmar com precisão que ela nunca conseguiu ler um livro até o final.
Ok, talvez ela tenha lido.
Mas nunca teve concentração suficiente para ler até a estação final.
Talvez ela tivesse aquelas coisas que as pessoas têm quando passam mal em algum transporte, enjôo ou coisa do tipo.
Ela desistiu há algum tempo de ler, provavelmente nunca tenha lido por prazer mesmo.
Ontem carregava na mão direita uma coisa especialmente inédita: um copo reciclável com algumas balas de goma. Vire-mexe lembrava-se das balas e pegava uma sortida para saborear.
Quando ficavam muito tempo esquecidas, ela fechava os olhos e parecia entrar em transe.
Sempre que podia, sentava na janela. Parecia querer encontrar alguma coisa nova na velha paisagem gasta e a maior parte do tempo, baldia. Ou apenas encontrar meu reflexo no vidro.
Hoje eu cedi meu lugar pra ela, estava cheia de malas e livros e coisas que pareciam atrapalhar a passagem.
Dei um sorriso e ela correspondeu.
Talvez amanhã eu sorria novamente.

Um comentário:

cana e açúcar disse...

Tomara q amanha eles esbarrem